Retirado de Horizontes Antropológicos, edição especial Antropologia e Consumo. O Mundo dos bens revisitado por Mary Douglas...vinte anos depois.
Foi uma verdadeira surpresa quando, recentemente, meus editores de Londres decidiram republicar O Mundo dos Bens (Douglas; Isherwood, 1979). Até onde eu sabia, o livro estava completamente morto, submerso sem deixar vestígios.
Embora eu tenha estudado para o livro e o escrito (com a ajuda de Baron Isherwood) com um espírito de animação, eu estava enormemente nervosa quando ele foi lançado e, logo em seguida, cheia de desgosto – como eu podia ter perpetrado algo tão obsoleto? Eu estava em Nova Iorque naquela época, e Richard Sennett, o diretor do Instituto de Humanidades, fez o que podia para que eu tivesse um pouco de discussão. Ele organizou dois seminários para mim, um com o instituto, e o outro com economistas da New York University que estavam inteiramente confusos e só queriam saber como o livro os ajudaria a medir o comportamento econômico. Ele também conseguiu com que eu falasse em particular sobre o livro com um membro do instituto, o falecido Vassily Leontiev, ganhador do Prêmio Nobel. Esse foi todo o debate que tive, e os resenhadores, que eu lembro, ficaram (como eu já previa) confusos, entediados ou hostis.
Antropologia econômica
O tema central do livro é que pobreza não pode ser definida pela ausência de riqueza. O livro tentava fazer uma aliança entre a antropologia e a ciência econômica, sugerindo uma definição de rede social de pobreza. O ponto de vista do antropólogo é de que as coisas cuja posse significa riqueza não são necessárias por elas mesmas, mas pelas relações sociais que elas sustentam. A pobreza é culturalmente definida, não por um inventário de objetos, mas por um padrão de exclusões, geralmente bastante sistemáticas.
No final nos anos 1970, quando o livro foi planejado, eu já estava fazendo antropologia há 30 anos e havia contribuído com a antropologia econômica através de meu próprio trabalho de campo no Congo Belga. No final dos anos 1940, quando eu era estudante, "antropologia econômica" era um interesse focal. Ele forneceu um modelo unitário da sociedade reproduzindo a si mesma num grande ciclo de doações recíprocas. De certa forma, o ensaio de Mauss parecia ir lado a lado com A Riqueza das Nações, de Adam Smith, e de O Capital, de Karl Marx, já que também apresenta uma visão total da economia e da sociedade interagindo. Mas o Ensaio Sobre a Dádiva (publicado em 1923) se destaca: por um lado, ele é sobre o que eram então chamadas "economias primitivas", ou seja, economias sem dinheiro, e por outro, ele contrasta explicitamente as economias sem dinheiro, onde a dádiva é o principal método de distribuição, com economias monetarizadas, que são o território da ciência econômica. Mauss aceita o hiato entre a antropologia e a economia, não tenta construir uma ponte entre ambas, e, ao contrário, tende a idealizar o caso primitivo. Conseqüentemente seu grande livro não parecia ter qualquer relevância para a economia moderna.
Nas décadas que seguiram, muito mudou na ciência econômica e há mais lugar para contabilizar o ensaio de Mauss entre as outras teorias econômicas que relacionam as energias que produzem os bens com as energias que demandam os bens. Não é um exagero vê-lo como uma contribuição às velhas discussões sobre a lei de Say. Say encarava a vida econômica como um processo circular e respondia aos temores de que a produção excessiva nunca seria absorvida por compradores, argumentando que o processo de produção em si gerava uma entrada de dinheiro extra que seria gasta no produto, de forma que o suprimento produz sua própria demanda. Mauss, por sua vez, está demonstrando o processo menos contra-intuitivo pelo qual a demanda produz seu próprio suprimento. Em outras palavras, os processos que economistas separam para propósitos de análise, Mauss trata como um sistema unitário interativo. "São 'todos', sistemas sociais inteiros cujo funcionamento tentamos descrever. Nós estamos preocupados com 'inteiros', com sistemas na sua totalidade. [...] pesquisa dos fenômenos sociais 'totais'." (Mauss, 1969, p. 77-78).1
Evans-Pritchard (1969, p. vii), em sua introdução à primeira tradução para o inglês, afirmou:
"Total" é a palavra-chave do Ensaio. As trocas de sociedades arcaicas que ele examina são movimentos ou atividades sociais totais. Elas são ao mesmo tempo fenômenos econômicos, jurídicos, morais, estéticos, religiosos, mitológicos e sócio-morfológicos.
Mauss mostra como as grandes correntes de dádiva ligam todos na comunidade num ciclo de trocas de longo prazo. As dádivas mantêm um padrão particular de relações sociais e o padrão de relações gera os padrões de trabalho que produzem os materiais para as dádivas. Em economias não-monetárias a quantificação era difícil, outro motivo para a idéia ser estranha à prática da ciência econômica.
Sob qualquer ângulo, tanto se o foco é na demanda, criando o suprimento, quanto no suprimento, criando sua própria demanda, o rabo da cobra está firmemente dentro da boca da cobra, como Piero Sraffa (1972) afirma. Talvez esta seja uma coisa curiosa a se querer fazer, mas se o circuito da economia foi artificialmente quebrado a favor de se calcular o suprimento e a demanda, é bom juntá-las novamente em algum momento. Naqueles dias, quem fazia trabalho de campo em antropologia sempre buscava relacionar o padrão total de demanda aos padrões de produção dentro de um esquema sociológico. Eu considero isso ainda o ideal para a antropologia econômica. Mas nós tínhamos, em primeiro lugar, que tratar dos problemas conforme eles surgiam, e no final os antropólogos foram vencidos naquele objetivo pelos economistas.
Os primeiros passos foram Economics of the New Zealand Maori (1959), de Raymond Firth, seguindo por A Primitive Polynesian Economy (1939), que demonstraram que a análise econômica formal poderia ser aplicada a uma economia não-monetarizada.
Isso foi importante e necessário. Audrey Richards, em Land Labour and Diet in Northern Rhodesia (1939), analisou os efeitos, numa sociedade de vilas, da migração do trabalho para o cinturão do cobre, os efeitos nos padrões de casamento e um foco nas dificuldades das mulheres vivendo em vilas semidesertas. Evans-Pritchard, em Os Nuer (1940), foi quem chegou mais perto de realizar o programa de Mauss ao mostrar como trocas de gado e trocas de mulheres formavam um só sistema recíproco. Moses Finley (1973) fez uma análise da troca de dádivas dos laços entre chefes e súditos na Grécia antiga.
Esses foram nossos professores. Essa foi a base da minha própria pesquisa de campo no (então) Congo Belga. Eu estava especialmente interessada em transações intergeracionais (Douglas, 1963). As novas fileiras de pesquisadores de campo africanos reportaram os tristes efeitos da monetarização e a condição dos migrantes trabalhadores.2 Através da influência de Franz Steiner, os escritos de Bohannon (1955) sobre a economia Tiv foram bem sucedidos em mostrar a circulação de mulheres, escravos e preciosidades num esquema bem coerente com produção doméstica, casamento e hierarquia militar. Quase na mesma época um modelo de comunicação da circulação de mulheres e bens foi a espinha dorsal da teoria elementar do parentesco, de Lévi-Strauss (1949). Entretanto, Lévi-Strauss negligenciou o lado econômico da equação – e não foi o único antropólogo a fazer tal coisa – e por várias outras razões a visão totalizante de Mauss foi logo perdida.
Uma razão para o declínio na antropologia econômica era seu pensamento evolucionário implícito. A dádiva veio primeiro, cedo, e era elementar, primitiva; o dinheiro veio depois, com a civilização, mas do ponto de vista anterior o dinheiro significava ruína, ele dissolveu os laços primordiais de parentes e vizinhos e deteriorou a base moral da comunidade. A tese forneceu uma plataforma fácil para uma antropologia marxista da exploração colonial, que era necessária e prestes a chegar, mas inevitavelmente quebrou o paradigma estabelecido por Mauss e cortou a tentativa de tornar aplicáveis as categorias econômicas. O debate que se seguiu entre os antropólogos dividiu-se a serviço de diferentes pautas.
A primeira grande mudança foi uma forte controvérsia em relação a se a análise econômica era, de alguma forma, possível de ser usada em economias não-monetárias. Raymond Firth liderava os chamados "formalistas", que acreditavam que o caminho para o maior entendimento era através da aplicação e desenvolvimento dos conceitos formais da ciência econômica. Dalton (ver, por exemplo, Economic Anthropology and Development, 1971) liderava os chamados "substantivistas", que acreditavam que a maior parte da substância da vida econômica estava caindo pelas rachaduras da teoria econômica formal. Eu mesma concordava com tal crítica, mas estava otimista em relação a enfrentá-la, estendendo o conceito de ciência econômica. Os formalistas lutavam na retaguarda em favor da disciplina intelectual e os substantivistas favoreciam a descrição sem disciplina. Enquanto isso, no centro de todo calor e fúria, a antropologia econômica ainda permanecia não-sistematizada e, embora a disputa fosse violenta, ela foi se tornando bastante escolástica e remota. Assim, muitos trabalhos excelentes sobre comportamento econômico estavam sendo publicados por antropólogos, suplicando por uma síntese. Mas os jovens economistas de hoje não estão cientes das coisas boas que foram feitas e estão ocupados reinventando a roda.
E assim aconteceu que, por uma divisão implícita de trabalho, os economistas estudavam economias de mercado e os antropólogos estudavam economias de dádiva. Embora ambos aceitassem que a linha poderia não ser claramente traçada, eles não esperavam mais ter que falar uns com os outros. Esse era o pano de fundo frustrante de O Mundo dos Bens. Mas a principal razão para a estagnação da antropologia econômica foi que construir uma ponte entre a ciência econômica e a cultura era uma tarefa muito mais difícil do que parecia num primeiro momento.
A idéia de pessoa
Eu tinha a ilusão de que se nós estudássemos macroeconomia estaríamos nos aproximando do modelo totalizante de sociedade de Mauss. Assim, tirei um ano para estudar a teoria de consumo, que parecia ser relevante para a doação de dádivas e que naquele momento era uma preocupação teórica importante. No início, eu desconfiava que a falta de diálogo era nosso erro enquanto antropólogos: talvez nós tivéssemos uma idéia muito reduzida do que a ciência econômica podia fazer. A teoria da dádiva não poderia ser aplicada à economia moderna sem, antes, mudar uma noção fundamental. A idéia corrente era de que a "demanda do consumidor" é uma demanda por bens a serem consumidos pelo comprador. Simbolizado pela cestinha de compras, o consumidor deveria estar escolhendo coisas, objetos, para seu uso privado ou familiar. Na verdade, o oposto é verdade. O consumidor é inerentemente um animal social, o consumidor não quer objetos para ele mesmo, mas para dividir, dar, e não só dentro da família.
O maquinário da teorização e medição econômica foi criado para a idéia de que o consumo é uma atividade de indivíduos. A teoria está presa nessa noção. Nos anos seguintes, continuei procurando maneiras de afirmar isso (Douglas, 1996). Eu ainda continuo tentando atacar a idéia enganosa de pessoa humana (Douglas; Ney, 1998). Recentemente, para um estudo sobre clima global, tive que pesquisar a atual filosofia do bem-estar, as teorias de necessidades básicas, necessidades humanas, qualidade de vida, e os resultados de pesquisas baseadas nelas (Rayner; Malone, 1998). Todas essas teorias assumem uma teoria de necessidades, começando pelas físicas; primeiro a necessidade de viver, de ter comida e água, abrigo, etc., e então a necessidade de companhia e satisfação social e espiritual. O pensamento é tão fracamente teorizado na sua própria área que tem que iniciar com biologia. É absurdo. A teoria deveria começar com seres inteligentes que tem o suficiente para viver e mesmo assim conseguem matar de fome alguns de seus iguais. Pobreza é uma questão de como as pessoas tratam umas às outras, e isso precisa de um enquadramento sociológico. Parece haver um tipo de incapacidade profissional. Muito é dito sobre comunicação, mas sempre sobre indivíduos comunicando: uma inabilidade de contemplar a cultura como um processo dinâmico feito por indivíduos interagindo. Uma psicologia que concebe de forma totalmente errada a natureza da pessoa é parte do fardo com o qual a teoria do consumo tem tido que lidar.
Minha idéia central é de que a ciência econômica deveria levar em consideração a função comunicativa dos bens como básica (Douglas, 1987). Isso necessitaria de algumas afirmações fortes. Ou se esquece a biologia, ou ela é usada de forma inteligente. Se uma pessoa nasce como um ser comunicativo, e nasce dependente dos outros, nós certamente devemos assumir que algum poder comunicativo inerente é parte do equipamento nativo. Eu aplaudo o departamento psiquiátrico da Universidade de Edinburgo, Colwyn Trevarthen, e colegas escandinavos, que adotam noções biológicas evolucionárias: a criança nasce dependente de outros humanos; ela tem a vontade de controlar o seu ambiente, e assim é fortemente interessada em controlar os humanos à sua volta. Ela é dotada da experiência de seu próprio corpo e, assim, da sua experiência de lateralidade ela entende transações de dois lados, como bater palmas, e de sua posição de pé numa dimensão vertical ela entende balanço e simetria. Assim, há um interesse primordial na reciprocidade. Nessa abordagem teórica, as necessidades sociais vêm ao mesmo tempo ou antes do conforto físico, porque elas são as maneiras de conseguir comida, etc. É impressionante ainda no dia e época de hoje ler psicologia do desenvolvimento que ensina que as habilidades sociais vêm posteriormente no desenvolvimento infantil. Ao invés de uma tabela de necessidades básicas que começa com as físicas e termina com as sociais e simbólicas, o oposto funcionaria melhor.
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