Um debate bastante atual discutido na edição n.181 da revista FAPESP.
Antropologia não é ciência?
Debate coloca fundamentos da disciplina em xeque
Márcio Ferrari
Edição Impressa 181 - Março 2011
A Associação Americana de Antropologia (AAA) recentemente fez uma pequena alteração na redação de um de seus documentos principais. Embora pouco extensa, a mudança provocou uma grande repercussão, porque “ciência” foi a principal palavra retirada. Para o público leigo, o assunto chegou na forma de uma reportagem do New York Times, no dia 9 de dezembro, intitulada: “Antropologia é ciência? Declaração aprofunda um conflito”. A “declaração” referida é o plano de intenções de longo prazo da associação. Antes ele dizia que o objetivo da entidade era “promover o avanço da antropologia como a ciência que estuda a humanidade em todos os seus aspectos”. Agora diz que “os propósitos da associação devem ser a promoção do avanço do entendimento público da humanidade em todos os seus aspectos”. Em mais dois pontos do texto a palavra “ciência” foi removida. Ela subsiste, no entanto, em outros documentos importantes da AAA, como sua declaração de princípios.
Segundo o repórter do New York Times, Nicholas Wade, a decisão é resultado de uma tensão de muitos anos entre duas vertentes, uma ligada a disciplinas mais identificadas com a tradição científica, como a arqueologia e a antropologia física, e outra que se dedica a estudos de raça, etnia e gênero e “se vê como defensora de povos nativos e dos direitos humanos”. A presidente da AAA, Virginia Dominguez, da Universidade de Illinois, disse ao jornal que a palavra “ciência” foi retirada porque o conselho diretor da entidade procurou incluir também antropólogos que não veem seu trabalho como inserido no campo científico.
Dias depois, a AAA reagiu oficialmente às notícias publicadas, com citação direta ao New York Times, dizendo que a cobertura “retratou a antropologia dividida entre os que a praticam como ciência e aqueles que não o fazem, e deu a impressão errônea de que a diretoria da AAA crê que a ciência não tem mais lugar na antropologia”. O texto prossegue: “Ao contrário, a diretoria reconhece e aprova o lugar crucial do método científico em grande parte da pesquisa antropológica”.
No mesmo comunicado, a AAA cita o trecho de um documento aprovado na mesma reunião que decidiu alterar a redação do plano de longo prazo. Esse texto se intitula “O que é antropologia?” e diz o seguinte: “Para entender a abrangência e a complexidade totais da cultura por toda a história humana, a antropologia retira e se baseia em conhecimentos das ciências sociais e biológicas, assim como das humanidades e das ciências naturais. Uma preocupação central dos antropólogos é a aplicação do conhecimento na solução dos problemas humanos”.
“Mesmo com esses esclarecimentos, é significativo que o New York Times tenha reagido daquela maneira e muita gente tenha se manifestado”, diz Luiz Fernando Dias Duarte, professor de antropologia social do Museu Nacional/UFRJ e vice- -presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). “A antropologia se construiu pelo diálogo com a alteridade cultural, através de uma complexa trama de hipóteses, modelos e interpretações. É apenas mais um movimento dessa tensão constitutiva que a AAA descreva sua tarefa como a de ‘promover a compreensão pública da humanidade’.” Duarte observa que a expressão introduzida no documento utiliza o verbo inglês to advance, relacionado ao progresso do conhecimento, “absolutamente característico do projeto iluminista e portanto científico. Não há, assim, muito com que se preocupar”, opina.
Dentro da AAA, entretanto, houve sinal de alarme. Peter Peregrine, professor da Universidade Lawrence, em Wisconsin, e presidente da Sociedade de Ciências Antropológicas, filiada à AAA, enviou um e-mail para todos os membros da associação pedindo que se manifestassem contra ou a favor da alteração de palavras do documento, que, para ele, pode vir a solapar as bases da antropologia americana. Peregrine atribuiu as mudanças a duas influências dentro da disciplina. Uma seria a dos “antropólogos críticos”, aqueles que veem a ciência antropológica como instrumento do colonialismo. A outra seria do pensamento “pós-moderno”, que, segundo Peregrine, contesta a autoridade da ciência e por isso equivale ao criacionismo, por “rejeitar o argumento racional e a reflexão”.
Por enquanto, contudo, nada indica que exista uma tendência a deixar de lado os procedimentos consensuais. “O debate sobre os métodos, o trabalho de campo, os conceitos etc. se faz no interior do campo científico. Ninguém propôs, até agora, que a antropologia saia desse campo”, diz Paula Montero, da Universidade de São Paulo e coordenadora-adjunta da diretoria científica da Fapesp. “O debate americano é propor que a antropologia se torne instrumento de ação política, o que é inteiramente diferente.” Sobre os termos da nova declaração, que falam em “promover o avanço do entendimento público da humanidade”, ela reage: “O entendimento público se faz pelo conflito e pelo debate. Não é a antropologia que pode fazer isso, porque não é uma religião. Mas já há muitas beiradas do campo antropológico que se atribuem a defesa de verdades e missões de salvação”.
Humanista – “O debate se equivoca quando conduz a posturas ideológicas ou reduz a antropologia às atividades humanitárias”, avalia a professora. É claro que mesmo ciência tem um fundamento ético. Ainda assim, faz parte do trabalho científico torná-lo explícito e controlar seus efeitos sobre os resultados. “A pesquisa sobre grupos humanos está indefectivelmente ligada à dignidade desses grupos”, prossegue a antropóloga. “Fundamentos éticos estão sempre presentes. Não há disciplina de saúde, por exemplo, que não implique a defesa da vida humana. Isso não lhe tira o caráter de ciência.”
A “missão de salvação” é um objetivo que, na discussão em curso nos Estados Unidos, se atribui principalmente aos “antropólogos críticos”. Segundo Duarte, eles formam uma “corrente exclusivamente americana que tem um componente militante explícito”. Para o antropólogo, esse grupo adota “uma visão protestante de redenção da condição humana no mundo. Ele denuncia o suposto caráter neutro da ciência, mas isso não quer dizer que não siga protocolos científicos”.
Segundo Miriam Pillar Grossi, da Universidade Federal de Santa Catarina e ex-presidente da ABA, que fez pós- -doutorado na Universidade da Califórnia (Berkeley), toda a polêmica está muito ligada a características específicas da antropologia americana. “Ela faz sentido nos Estados Unidos porque lá a formação antropológica se dá no que eles chamam de quatro campos: cultural, arqueológico, físico-biológico e linguístico”, diz. No Brasil, a antropologia sempre foi cultural e nunca houve a tensão, identificada pelo New York Timesnos Estados Unidos, entre a facção a que pertencem os arqueólogos e a que inclui os etnólogos.
Miriam Pillar Grossi observa também que no Brasil “não se coloca” a discussão sobre se a antropologia é ou não ciência por outra razão importante: quase toda a antropologia aqui é feita nas universidades. Apenas há pouco tempo se tornou numericamente significativa a atuação de antropólogos em outros contextos, como as ONGs. “O modo atual da prática antropológica é muito reconhecido pelos institutos de fomento de pesquisa. A antropologia se legitima e se reconhece nesse diálogo com outros campos e é tida como ciência tanto quanto a matemática, até porque o debate sobre a subjetividade também está adentrando esses campos que antes viam a ciência de forma totalmente positivista.”
De acordo com o New York Times, o racha refletido nas recentes mudanças na AAA atingiu um ponto crítico com a publicação, há pouco mais de 10 anos, do livro Darkness in Eldorado, do jornalista Patrick Tierney (no Brasil, a Ediouro o lançou em 2002 com o título Trevas no Eldorado). As acusações feitas por Tierney contra o antropólogo americano Napoleon Chagnon foram identificadas por parte dos membros da AAA como consequências maléficas de uma concepção “científica” da antropologia. Os procedimentos dessa suposta vertente estariam intrinsecamente ligados a uma postura colonialista e etnocentrista, o que levaria a abusos contra os povos nativos.
“O debate que denuncia a antropologia como um instrumento da colonização data dos anos 1960 e está ligado a movimentos políticos de descolonização da África e da Ásia”, diz Paula Montero. “A antropologia acadêmica teve de repensar seus pressupostos e suas teorias: os modelos funcionalistas perdem capacidade explicativa, as condições de pesquisa de campo e de escrita etnográfica se transformam profundamente. Mas a antropologia fez isso para permanecer ciência. A crítica a Chagnon nesse contexto (independentemente de ele ter feito ou não o que disseram que ele fez) associa necessariamente ciência e dominação. Portanto, o argumento aqui seria dar um fim à ciência.”
Sarampo – No livro, Tierney acusa Chagnon, entre outras coisas, de ter causado um surto de sarampo entre os Ianomâmi e de ter induzido membros da tribo a encenarem rituais. Os estudos de Chagnon entre os Ianomâmi do Brasil e da Venezuela, contidos no livro The Fierce People (O povo feroz), de 1964, eram até então considerados clássicos. “Discordo da interpretação de que as atividades de Chagnon entre os Ianomâmi sejam representativas da antropologia clássica, considerada ‘científica’ pelos críticos americanos”, diz Miriam Pillar Grossi. “Os clássicos da antropologia são atuais até hoje. Não é uma questão de antropologia ultrapassada, mas de ética.” Duarte complementa: “Más condutas éticas podem ser cometidas por antropólogos de qualquer vertente, ‘cientificistas’ ou não”.
Quanto aos “pós-modernos”, eles são o que no Brasil costuma ser referido como “virada pós-estruturalista das ciências humanas”. “Ela discute o paradigma clássico, de [Bronislaw] Malinowski [antropólogo polonês,1884-1942], que supõe um certo realismo na descrição antropológica”, diz Paula Montero. “O novo paradigma privilegia a natureza discursiva do real.” “Nos Estados Unidos pareceu uma visão muito nova e provocou toda uma crítica à prática tradicional”, diz Miriam Pillar Grossi. “No Brasil, o questionamento sobre a forma de pensar do outro já está presente há muito tempo.”
Descontadas as questões de contingência, resta uma discussão epistemológica que tem raízes bem antigas e exige um aprofundamento no debate dos próprios conceitos em jogo, além de uma prospecção histórica. “Questionar o status de ciência da antropologia supõe que se saiba inequivocamente o que é ciência e quais os critérios para uma prática aspirar ao status de ciência”, diz Marcio Goldman, do Museu Nacional/UFRJ. “Mas as discrepâncias entre diferentes concepções de ciência são tão grandes quanto as discrepâncias entre diferentes concepções de antropologia.”
Paula Montero contesta Goldman. “É claro que há um debate sobre métodos e abordagens na antropologia, mas discordo inteiramente de que não se saiba o que é ciência e quais os seus critérios. Se não houvesse consenso quanto a isso, não haveria um campo disciplinar acadêmico maduro e com amplo entendimento a respeito das regras de seu funcionamento. O autor confunde discrepâncias de abordagens com ser ou não ser ciência. Ora, fazem parte do campo da ciência a discrepância e a argumentação.”
“Do ponto de vista epistemológico, há, sim, um debate legítimo”, diz a antropóloga. “Que tipo de razão está embutido na prática científica? Que ontologia está posta em campo? E que tipo de ciência está sendo feita nessa posição?” Esse questionamento não levará a um modo único e verdadeiro de fazer ciência, mas à explicitação dos procedimentos. “Toda proposição precisa entender um problema teórico a partir de regras de um certo tipo de conhecimento. São sempre questionáveis, podem ser aceitas ou não, mas não podem ser consideradas uma crença, um pensamento ingênuo ou uma opinião. Adotá-las é um pré-requisito fundamental para aceitar o princípio do contraditório, que permite o debate.”
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