domingo, 9 de janeiro de 2011

Leitura de Domingo - A pena do Etnólogo

A pena do etnólogo


QUANDO "TRISTES TRÓPICOS" foi lançado na França, em 1955, o júri do prêmio Goncourt publicou um comunicado, lamentando não poder atribuir a honra máxima da literatura francesa ao livro de Lévi-Strauss. O regulamento era claro: o prêmio se dirigia às "obras de imaginação". E "Tristes Trópicos" não era um livro de ficção.

Naquele ano, o Goncourt acabou nas mãos de Roger Ikor, autor de "Les Eaux Mêlées" ("Águas Misturadas"). E, como se não bastasse ter que compartilhar com o mundo a indiscrição do júri que o premiou a contragosto, Ikor ainda teria que amargar o esquecimento da história.

CIÊNCIA E LITERATURA

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SAO PAULO, SP, BRASIL, 05-01-2010, 16:00h. Pinturas para ilustr'ssima. (Alexandre Rezende/Folhapress EDITORIA) *** EXCLUSIVO FOLHA ***
Não é anormal atribuir prêmios literários de prestígio a livros e autores de quem nunca mais vai se ouvir falar. Anormal é o júri de um prêmio de prestígio, dirigido a uma obra de ficção, lamentar publicamente não poder entregá-lo a um cientista. O caso expõe um pouco das relações ambíguas entre ciência e literatura na França.

O aparecimento das ciências humanas no século 19 criou um problema que permaneceu mal resolvido entre os franceses ao longo do século 20 --e que os ingleses, graças a circunstâncias culturais e históricas diversas, puderam ignorar. O conhecimento do homem, até então considerado objeto literário, passou a ser reivindicado pela ciência.

É desse problema, nas suas variadas manifestações e reações, que trata o recente"L'Adieu au Voyage --L'Ethnologie Française entre Science et Littérature" ["Adeus à Viagem-- A Etnologia Francesa entre a Ciência e a Literatura", Gallimard, 528 págs., € 25, R$ 55], de Vincent Debaene, organizador das obras de Lévi-Strauss na prestigiosa coleção Bibliothèque de la Pléiade e professor de literatura na Universidade Columbia, em Nova York.

SEGUNDO LIVRO

Debaene notou que grandes obras da antropologia francesa do século 20 se fizeram acompanhar por um segundo volume, por assim dizer "literário", do mesmo autor. O livro podia sair anos depois (ou, excepcionalmente, antes --caso de "África Fantasma", de Michel Leiris) do trabalho científico ao qual fazia eco --como "Tristes Trópicos", publicado sete anos depois de "A Vida Familiar e Social dos Índios Nambikwara". O importante é que esse "segundo livro" retomava o objeto de estudo do primeiro, lançando mão da subjetividade e da retórica literária que a obra científica tinha por costume banir.

Debaene centrou sua análise em três casos representativos de três motivos diferentes para a incorporação da subjetividade "literária" ao discurso científico: "Os Queimadores de Homens" ("Les Flambeurs d'Hommes", Berg International), de Marcel Griaule; "África Fantasma" (trad. André Pinto Pacheco, Cosac Naify), de Michel Leiris, e "Tristes Trópicos" (trad. Rosa Freire d'Aguiar, Companhia das Letras), de Claude Lévi-Strauss.

Quando surge a antropologia, a literatura de viagem e a comercialização do exótico gozam de amplo sucesso junto ao público leitor. É preciso se diferenciar da vulgaridade não científica do gênero. E a tradição positivista vai exercer sua influência sobre os etnólogos franceses.

"Os Queimadores de Homens", que relata em terceira pessoa, como se narrasse as aventuras de um personagem de romance, o trabalho etnográfico e linguístico de Marcel Griaule na Etiópia, entre janeiro e junho de 1929, é uma reação e uma compensação, por vezes canhestra, segundo Debaene, à camisa de força do discurso positivista que o próprio autor se impunha em seu trabalho científico, em nome da objetividade.

CIÊNCIA VIVA

O problema é que a etnografia surgia como uma "ciência viva". E, a seguir os preceitos positivistas, o antropólogo corria o risco de transformar o objeto vivo de sua análise e descrição em peça morta de museu.

Herdeiro do Iluminismo e do positivismo francês, Griaule se confronta com o dilema de se distanciar do diletantismo dos escritores viajantes e restituir, ao mesmo tempo, a atmosfera e a vida da sociedade estudada, sob o risco de ser acusado de retórico. Seu livro é uma forma híbrida, a maneira nem sempre bem-sucedida que encontrou para lidar com as contradições de uma ciência em busca de identidade, tentando reconstituir a vida de um objeto do conhecimento que só existe vivo.

O caso de Leiris é diferente. O autor vinha do movimento surrealista. E, como os surrealistas, idealizava uma vida mais verdadeira, para além das convenções, inclusive artísticas. É isso o que ele vai buscar na antropologia. Uma arte e uma ciência mais verdadeiras, mais vivas.

E, como Lévi-Strauss, logo vai entender que a premissa da alteridade, que sustentava o exotismo da literatura de viagem, estava errada. Por uma razão muito simples: ela era um correlato da dominação sobre as sociedades não ocidentais. Além de criar uma aporia para o conhecimento: o discurso da alteridade é tautológico, pois ou o objeto do conhecimento é outro e é incognoscível, ou é cognoscível e já não pode ser outro. Não dá para conhecer um objeto em sua alteridade absoluta. O "adeus à viagem" do título do livro de Debaene significa uma recusa das ilusões do conhecimento aventureiro e glorioso dessa alteridade idealizada.

PARADOXO

Por trás dessa reflexão, havia a esperança e a intuição de que a literatura talvez pudesse lançar pontes sobre esse paradoxo, por meio de um outro modo de conhecimento.

É o que Leiris vai tentar com "África Fantasma", e Lévi-Strauss com "Tristes Trópicos". Os próprios objetos da violência do conhecimento ocidental (os indivíduos das sociedades indígenas no Brasil e na África) teriam, segundo esses livros, o poder revelador da insuficiência desse mesmo conhecimento.

Em "Tristes Trópicos", sob influência de Proust, Lévi-Strauss toma como modelo a comparação do diverso e a associação do extemporâneo, revelando a literatura como um modo de conhecimento possível, em que o sujeito (o autor) passa a ser o pivô --pela memória, pelas sensações-- das oposições de objetos heteróclitos, um "conhecimento total" em oposição ao conhecimento das partes, típico da análise científica.

HISTÓRIA

Mais que isso, o antropólogo mostra que não é possível se furtar à história e à sua violência (representada pela perda da diferenciação e a tendência à homogeneização das culturas, que faz todo o sistema entrar em entropia). E aí fica claro que tampouco há redenção proustiana. Não pode haver redenção nem mesmo pelo sensível e pela imaginação, já que nada detém o curso da história (no caso, o desaparecimento das civilizações indígenas).

Por isso, é preciso recorrer a modos de articulação entre a expe-riência e o saber. Ou seja: "O 'segundo livro' não é uma condenação da ciência ou uma compensação das suas insuficiências, mas o relato da experiência subjetiva que a tornou possível, ou o relato da construção do objeto teórico, ou uma combinação dos resíduos que todo empreendimento do conhecimento deixa para trás".

Nesse sentido, "Tristes Trópicos" seria mais propriamente um "primeiro livro", pois anuncia a obra por vir de Lévi-Strauss, cria a possibilidade de apreender o mundo pela lógica e pela correspondência das sensações, abrindo o caminho para os clássicos que vêm em seguida, como "O Pensamento Selvagem" (Papirus) e "O Cru e o Cozido" (Cosac Naify).

ETNÓGRAFO GLORIOSO

O antropólogo procura um novo humanismo, renunciando à ideia de viagem como busca da alteridade e à "mitologia do etnógrafo glorioso" representada no trabalho de campo. Denuncia a ilusão de um sujeito que se constitui pela expe-riência, a ilusão de um homem que domina a natureza. Rompe com a tradição do Iluminismo francês para ir buscar inspiração no espírito renascentista de Montaigne.

Fica claro, a partir daí, que a questão do livro de Debaene é literária, mas pelo viés do sociólogo. Professor na Universidade Columbia, ele convive de perto com o vale-tudo dos estudos culturais e com o clichê pós-moderno de que a ciência também é um discurso de ficção (ideia sedutora, que encontrou terreno fértil nas universidades americanas).

Ao mesmo tempo, conhece bem a herança que a radicalidade do pensamento de Barthes, Derrida e Blanchot deixou para a literatura francesa. E vai combater nas duas frentes: tanto a ideia de que a ciência é uma forma de ficção, como a soberba de uma literatura que se recusa a se submeter à história e às ciências humanas. "Tristes Trópicos" será o seu modelo.

SILÊNCIO

A disputa que opunha, antes da Segunda Guerra, ciência social e literatura pela posse do saber sobre o homem vai passar, nos anos 60, com Barthes, à querela sobre a própria possibilidade desse saber. Como Blanchot e Derrida, Barthes vai se fazer porta-voz de uma literatura intransitiva, na qual "só o silêncio 'se fala'".

Uma literatura que se define como um saber em si, autônomo, irredutível aos recortes da análise social e histórica. Não é por acaso que a preciosidade do estilo e a meditação moral de "Tristes Trópicos" não encantam Barthes. Ainda mais num tempo em que Beckett é o paradigma literário.

O pensamento de Barthes, de Derrida e de Blanchot terá enormes consequências tanto para a literatura francesa --que, de repente, se vê imobilizada diante de um modelo teórico genial, mas cuja consciência cria um impasse para a criação autoral-- quanto para as chamadas "humanidades" das universidades americanas.

A literatura anglo-saxã, por sua vez, mal vai tomar conhecimento do assunto, saindo ilesa para impor sua hegemonia de mercado, com a crença renovada no realismo psicológico.

VÍCIO

É contra o impasse que Debaene investe. Para ele, o clichê pós-moderno segundo o qual o discurso científico é uma ficção entre outras apenas reitera a dicotomia entre ciência e literatura, reafirmando a oposição entre objetividade e subjetividade. Para escapar ao vício do esquema, propõe uma antropologia das ciências, que leve em conta tanto o fato social e cultural como a determinação das psicologias individuais.

Ao mesmo tempo, exorta a literatura a descer do pedestal de autonomia e irredutibilidade, onde permanece pairando como um discurso ensimesmado, sem objeto. Quer voltar a submetê-la à história, inseri-la no contexto histórico.

É o que se realiza em "Tristes Trópicos", segundo Debaene. Aí, o "segundo livro" significa a articulação entre a experiência vivida e o discurso do saber, levando a cabo, com a incorporação da subjetividade "literária", a empreitada inacabada do trabalho de campo, que se sustentava sobre bases falsas, como a busca pela expe-riência de uma alteridade pura e preservada.

O que "Tristes Trópicos" permite ao seu autor é "explorar os limites de uma subjetividade historicamente e culturalmente constituída". Passa a ser, assim, "um tributo pago pelo etnógrafo pela violência de ter querido constituir outros homens em objetos".

Fonte: Folha de São Paulo

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