Em tempos de intensa discussão sobre a noção de cultura, tanto como categoria do pensamento antropológico quanto como instrumento político nativo, finalmente chega a prometida publicação em língua portuguesa de "A invenção da Cultura" de Roy Wagner. Publicado originalmente em 1975 a obra chega para acalorar as discussões em pauta na teoria antropológica de hoje.
Leia abaixo a apresentação do livro publicada pela editora Cosac Naify:
Um divisor de águas da antropologia
Inédito em português, a Cosac Naify lança A invenção da cultura, de Roy Wagner, um livro que revolucionou os estudos de antropologia
Publicado pela primeira vez em português, 35 anos depois de sua edição original, A invenção da cultura de Roy Wagner é provavelmente o livro mais esperado pelo meio antropológico brasileiro nos últimos anos. A obra radicaliza uma reflexão sobre o polêmico conceito de cultura em antropologia: a partir da consideração dos modos de conceitualização nativos, ela reformula a própria disciplina antropológica. Para Wagner, não se trata de entender o que outros povos produzem como “cultura” a partir de um dado universal (a “natureza”), mas antes, o que é concebido como dado por outras populações. Com isto, a própria noção de “natureza” como dado universal e de “cultura” ficam sob suspeição. Eis o que explica que o livro tenha sido tão lentamente digerido pela disciplina, ainda que tenha influenciado antropólogos da estatura de Marilyn Strathern e Eduardo Viveiros de Castro. Após um meticuloso trabalho de tradução, a publicação finalmente é lançada, incluindo um post scriptumdo autor escrito em 2010 especialmente para a edição brasileira, que contém ainda um “sobre o autor”, sua bibliografia completa e um índice remissivo de nomes e ideias.
A invenção da cultura insere-se no contexto de produção intelectual sobre a Melanésia que transformou a disciplina antropológica ao propor um olhar renovado para as culturas dos outros povos a partir das conceitualizações nativas. Trata-se de uma contribuição crucial para a história da antropologia, na medida em que elabora teoricamente a relação entre o antropólogo em campo e os nativos, bem como suas implicações para a análise antropológica, movimento iniciado pelo autor desde The Curse of Souw (1967) e amadurecido teoricamente nesta que é sua obra mais conhecida. Os nativos são retratados como colaboradores no processo de “invenção da cultura”: assim como o antropólogo trabalha com hipóteses acerca da cultura estudada, os nativos elaboram as suas em relação ao antropólogo e ao seu contexto. Para Wagner, a invenção é “um componente positivo e esperado da vida humana”, e o diálogo é constitutivo da produção de conhecimento antropológico sobre o outro – esse descentramento é concebido como um ir e vir entre o mesmo e o outro. A invenção da cultura vem coroar um esforço de reflexão fundamental sobre o lugar das formas de simbolização nativas nos modelos produzidos pelos antropólogos, discussão presente desde o início da produção intelectual do autor.
Wagner apresenta A invenção da cultura como uma epistemologia e generalização de Habu (1972), obra sobre a metaforização daribi que compõe a trilogia juntamente com Lethal Speech (1978), dedicada à análise do procedimento de obviação. Com base em ampla experiência de campo entre os Daribi, o conjunto destas obras se propõe, nos termos do autor, a “analisar a motivação humana em um nível radical”. Nessa empreitada, descartam-se as análises de matriz utilitarista e busca-se apreender a forma como os fenômenos são determinados pela cultura – os interesses são, para o autor, constituídos culturalmente. Mas a surpreendente inovação do argumento wagneriano é sua afirmação de que a cultura é uma ilusão: o antropólogo, atuando no modo de simbolização generalizante e convencional, constituiu as “culturas” dos outros povos. O livro realiza, pois, um duplo movimento: ao mesmo tempo que explicita as bases epistemológicas do conceito de cultura, mostrando de que forma ele é construído como ferramenta analítica destituída de realidade em si, ele delineia para o leitor como operam o modo de simbolização ocidental e o modo de simbolização característico das sociedades tribais. A análise, após colocar em foco as implicações da relatividade para a antropologia, recupera reflexivamente o conceito de cultura para dar conta das diferentes formas de simbolização humana.
Num intricado e complexo argumento, Roy Wagner apresenta uma leitura dos modos de objetificação que supera a dicotomia entre ação e pensamento para propor uma abordagem da cultura que se distancia de um posicionamento estritamente intelectualista. Ao apresentar as culturas como inventivas, os modos de simbolização assumem um caráter tanto intelectivo quanto prático. O autor desenvolve o argumento, mostrando como o modo de ação generalizante ou convencional – ocidental – e o diferenciante ou não convencional – dos Daribi da Nova Guiné e de outros povos tribais – operam em sua relação com o mundo. Se o modo convencional opera estabelecendo uma distinção entre o símbolo e a coisa simbolizada, o modo diferenciante assimila ou engloba aquilo que simboliza. Entretanto, ambos os procedimentos – a diferenciação e a generalização – são necessários para qualquer tipo de invenção: o que distingue as culturas é a ênfase atribuída conscientemente a cada um deles na simbolização, com o mascaramento do procedimento oposto. O procedimento mascarado é visto culturalmente como pertencente ao reino do “inato”, ao passo que o outro é assimilado à esfera da ação humana.
Em outras palavras, Wagner sugere que enquanto para “nós, ocidentais” o indivíduo, a personalidade, o instinto são da ordem do inato, ao passo que as relações sociais, o parentesco, a língua são produtos da ação humana, para os Daribi, essa ordem das convenções é tomada como “dada”, e a partir dela ocorrem os procedimentos de diferenciação – os Daribi aprendem a humanidade, e não as convenções sociais. No entanto, tanto o reino do “inato” quanto o do “artifical” são igualmente “inventados” pelo homem. É o fato de mascarar o procedimento de simbolização diferenciante (no nosso caso) ou convencional (no caso melanésio) que cria a ilusão do “inato”. É com base nessa sofisticada teoria que o autor coloca em xeque a distinção entre natureza e cultura, contribuindo para a reviravolta que vem ocorrendo na disciplina antropológica com os mais recentes estudos melanésios e americanistas.
A invenção da cultura: or argumento capítulo a capítulo
Do ponto de vista narrativo, a obra é marcada por momentos muito distintos: na introdução são apresentados de uma só vez os complexos conceitos que estruturam a obra – obviação e contraste contextual, convenção e diferenciação, dialética cultural, metaforização, inovação, controle, mascaramento – bem como seu modelo teórico, construído por dedução, e não por indução, procedimento mais comum na antropologia. Os dois primeiros capítulos, de leitura mais fluida, debruçam-se sobre situações de campo em alguma medida familiares aos antropólogos e colocam em pauta a questão da relação entre diversos modos de ação e simbolização – leia-se inventividade – na produção do conhecimento antropológico. Os capítulos subsequentes desenvolvem o argumento apresentando as concepções de linguagem, pessoa e sociedade que resultam dos diferentes modos de simbolização.
O capítulo inicial, “A presunção da cultura”, debruça-se sobre a ideia de “relatividade cultural” – o suposto de que a humanidade é composta por diversas culturas equivalentes no seu estatuto –, investiga suas implicações e propõe olhar para a diferença cultural a partir da “relação”, e não de uma análise pretensamente objetiva. Esse foco na relação é desenvolvido em sua reflexão acerca do trabalho de campo, no qual o antropólogo experiencia outro universo, que deve relatar nos termos de sua própria cultura para que possa ser lido como uma etnografia. É nessa experiência, marcada por ansiedade, deslocamento e confusão, que o antropólogo inventa a cultura do outro a partir das diferenças que se chocam com sua própria forma de perceber e agir.
“A cultura como criatividade” (cap. 2) começa com uma descrição do trabalho de campo do próprio Wagner e recupera sua interação com os Daribi, que se espantavam com o antropólogo (principalmente com o fato de ser solteiro e precisar contratar um cozinheiro) tanto quanto este se desconcertava com a diferença cultural. O capítulo mostra a cultura como construção resultante dessa relação cotidiana, baseada nas leituras que os nativos fazem do antropólogo e vice-versa: o antropólogo tentando dar sentido ao modo de vida com o qual entra em contato para transformá-lo num estudo etnográfico e os Daribi procurando compreender aquela pessoa que aparecia entre eles, sem mulher, com uma incompreensível mania de fazer entrevistas. Segue-se uma genealogia da noção de cultura, tanto nas acepções do senso comum como enquanto conceito antropológico, que termina com uma consideração da ideia de produção nas sociedades tribais e na sociedade ocidental: enquanto as primeiras produzem pessoas, a última produz coisas.
De leitura laboriosa, “O poder da invenção” (cap. 3) aprofunda-se na teorização anunciada na introdução e volta-se para a forma como operam os contextos nos diferentes modos de simbolização, trazendo exemplos dos Daribi e da sociedade norte-americana. Aqui fica claro como funcionam os controles que possibilitam a divisão do simbólico entre o inato e o artificial e possibilitam a extensão dos significados com base na metaforização. “A invenção do eu” (cap. 4) dá continuidade à argumentação de como o “eu” é construído segundo esses diferentes modos de ação/simbolização – a convenção sendo inata para os povos tribais, assim como o é o indivíduo entre os ocidentais – e como as ciências e tecnologias produzem o mundo natural como inato. Suas ideias vão na contramão da concepção usual de que a ciência atua sobre a natureza e a personalidade é intrínseca aos indivíduos: tudo é construído com base nos controles que possibilitam o mascaramento da ação humana.
“A invenção da sociedade” (cap. 5) recupera as duas formas de estabelecer uma relação entre as convenções culturais e a dialética inventiva. Para tanto, traça um paralelo com a concepção da linguagem nos dois modos de ação: enquanto no modo diferenciante a linguagem é vista como imanente, no modo generalizante ela é considerada uma convenção, um código, podendo ser aprendida e fabricada no desenvolvimento histórico. Entretanto, nos dois modos ela é um contexto convencionalizado para a expressão de significados. O procedimento de metaforização é apresentado como base para a linguagem, que pode atuar como controle (para os ocidentais) ou como coisa controlada (para os povos tribais). O capítulo termina com uma incursão pelo período medieval, mostrando a dialética entre a convencionalização dos senhores feudais e a diferenciação dos servos, bem como o desenvolvimento da sociedade ocidental até a situação atual.
O capítulo final, “A invenção da antropologia”, explicita como a antropologia surgiu com base na distinção entre natureza e cultura que A invenção da cultura contribui para desconstruir. O “homem natural”, embora desacreditado na antropologia, persiste em outras áreas do conhecimento ocidental e embasa a ideia de que a cultura tem caráter utilitário, reduzindo a criatividade ao pragmatismo. O mito do “homem natural” foi estabelecido em relação a uma concepção do humano que é ao mesmo tempo natural e moral: o homem é homem naturalmente, mas também o é culturalmente, e a cultura é um processo no tempo. Wagner contrapõe-se à concepção de que existe algo inato e algo construído e afirma que para entendermos as origens do homem e sua existência precisamos olhar para sua criatividade atual, e não só em retrospectiva: o argumento da invenção é de que não existe mera reprodução e mudança evolutiva dos padrões de criatividade, pois todo ato de significação, ainda que convencional, é um ato inventivo.