Mais uma vez no Brasil, Latour dá entrevista para o Valor Econômico:
Valor: O senhor acredita que o Brasil ocupa um lugar especial no cenário mundial neste momento em que a Europa vive uma crise?
Bruno Latour: O Brasil faz parte de minha vida desde a minha infância, pois tive três irmãs que moraram no país, por razões diferentes. Acredito que a questão ecológica do século XXI vai ser decidida aqui. Há coisas que podem ser melhoradas na Europa, do ponto de vista ambiental, mas o verdadeiro cenário desse jogo será o Brasil, porque já é muito tarde para a Ásia e a África. A questão é saber se os intelectuais e os políticos brasileiros poderão ir além dos fundamentos da modernidade. Mas a grande questão ecológica se desenrolará aqui.
Valor: Sua teoria ator-rede se refere a seres humanos e não-humanos. É uma crítica ao humanismo? O que o legado humanista nos proporcionou de tão criticável?
Latour: O humanismo é uma forma limitada de pensar o grupo dos humanos, que vejo como dependentes de muitos outros seres que não são humanos. Uma definição que isole o humano dos seres que o fabricam - tanto as divindades religiosas quanto as coisas com as quais os humanos vivem, como as árvores, mas também o alumínio para fazer estes talheres - é uma visão estreia. A perspectiva humanista foi legítima em uma determinada época, se falarmos do humanismo da metade do século XIX até a metade do século XX, antes que os ecologistas tenham chamado nossa atenção para o problema ambiental. Mas hoje não há mais nenhum sentido falar em humanismo. Este tipo de humanismo não tem os elementos necessários para absorver as grandes questões políticas atuais. Não se pode, por exemplo, fazer uma teoria consciente do problema do clima com o pensamento moral de Kant. Precisamos pensar na composição na qual seres humanos e não-humanos se relacionam. O humanismo é uma versão ultrapassada dos problemas políticos que nos dizem respeito. Hoje, trata-se de ser inteiramente humanista, ou seja, incluir todos os seres que são necessários para a existência humana.
Valor: Um dos postulados da teoria ator-rede é que, quando uma pessoa age, mais alguém está agindo junto. O senhor poderia explicar como isso funciona?
Latour: Os humanos são envolvidos por muitos outros seres, e a ideia de que uma pessoa age autonomamente, com seus próprios objetivos, não funciona nem na economia, nem na religião, nem na psicologia nem em nenhuma outra situação. Portanto, a pergunta que a teoria ator-rede coloca é: quais são os outros seres ativos no momento em que alguém age? A antropologia e a sociologia que tento desenvolver se ocupa da pesquisa desses seres. Eu posso colocar a questão de um modo inverso: como, apesar das evidências de todos os numerosos seres que participam de uma ação, continua-se a pensar como se o único ator fosse o humano dotado de uma psicologia, ciente de si mesmo, calculador, autônomo, responsável? A antropologia no Brasil é particularmente capaz de entender que não há esse "eu", esse sujeito individual e autônomo que age no mundo, o que é uma visão muito estreita. Tenho muito contato com outros antropólogos brasileiros, como o Eduardo Viveiros de Castro (UFRJ).
Valor: O senhor veio ao Brasil para participar de um simpósio sobre novas tecnologias de comunicação. Qual é a grande afinidade entre a sua teoria ator-rede e as teorias da comunicação?
Latour: Elas são próximas porque a teoria ator-rede é essencialmente uma teoria da multiplicidade de mediações, e esses pesquisadores estão interessados em discutir o domínio da mídia e das mediações. Aqueles que se interessam por mediação - de modo positivo, e não negativamente - encontram conceitos e métodos para trabalhar com a teoria ator-rede.
Valor: Por que os jornalistas estão sempre mencionados entre os integrantes importantes da teoria ator-rede?
Latour: A formatação de informações desempenha um papel muito importante no espaço público, no qual se situa o espaço político. Não conheço muitos estudos sobre jornalismo que sejam feitos a partir da teoria ator-rede, porque essas pesquisas geralmente são feitas do ponto de vista crítico, e a teoria ator-rede não é uma crítica. Muito frequentemente, os jornalistas são simplesmente acusados de deturpar um ideal de verdade que, se não houvesse a mediação, chegaria ao público a partir de uma transmissão transparente e direta. Cientistas, políticos e economistas gostam de dizer que, se não houvesse os jornalistas, a informação seria mais transparente, mais direta, menos comprometida.
Valor: A teoria ator-rede se transformou em muitas outras coisas - cada um dos pesquisadores do grupo original seguiu por um lado, e houve uma diáspora. O senhor ainda se reconhece como um teórico da ator-rede?
Latour: O grupo original nunca foi muito unido, mas se reuniu em um momento em que a sociologia percebeu que havia negligenciado a técnica, a ciência, e os seres não-humanos. Foi uma tomada de consciência das ciências sociais de que o século XX nos legou uma série de questões - como a da dominação e a da exploração -, mas sempre com uma visão sociocentrada. A teoria ator-rede vem a ser a evidência de que é preciso se interessar pela vida secreta dos objetos.
Valor: Refaço ao senhor uma pergunta que está no livro "A Esperança de Pandora" (Edusc): de onde provém a oposição entre o campo da razão e o campo da força?
Latour: Fiz uma genealogia dessa oposição, que remonta à falsa disputa entre os sofistas e os filósofos e organizou o debate nos países ocidentais. Pretendi suspender essa separação e colocar a questão sobre qual é a força dos dispositivos racionais. Foi assim que comecei minha antropologia da ciência. E há uma segunda pergunta: quais são as razões da relação de força política, religiosa, econômica? A distinção entre força e razão faz parte de um conjunto de antigas dicotomias que não são mais capazes de nos orientar quando falamos da questão científica. Nessa dicotomia, supõe-se que a razão vai unificar a discussão. Mas, se a razão já teve esse poder, atualmente não tem mais, e precisamos encontrar outras ferramentas intelectuais para nos orientar nessa disputa. É o que eu chamo de cartografia da controvérsia. Essa é hoje uma grande questão para a democracia.
Valor: Afirmar que a ciência é social é uma forma de relativizar os resultados científicos?
Latour: Esse é um mal-entendido sobre o significado da palavra social. Evidentemente, dizer que os fatos são sociais não equivale a dizer que esse garfo é uma fabricação social - isso não faria sentido. Eu digo que esse garfo é resultado de um processo industrial que inclui uma legislação, empresas, indústrias - o que é totalmente diferente. A ciência faz parte de um coletivo - estou propositalmente evitando usar a palavra social - do mundo. Há quem acredite que a ciência, particularmente as ciências naturais, é absoluta. Mas esses são os religiosos da ciência, não os participantes da ciência. Não conheço um ator participante da ciência que não seja um relativista ou, melhor dizendo, um relacionista, porque ele sabe que conhecer é estabelecer relações dentro de um quadro de referências. A crítica aos relativistas, feita pelos absolutistas, é frequente, mas essa não é uma discussão produtiva. A discussão que me interessa é: como estabelecer as relações entre os quadros de referência, as culturas, os modos de existência, as formas de vida? Não conheço quem que, desse ponto de vista, critique o relativismo.
Valor: Pode-se resumir seu livro "Jamais Fomos Modernos" como uma crítica à modernidade. O senhor mantém as mesmas críticas em relação aos pós-modernos?
Latour: Sim. Os pós-modernos tiveram a sensibilidade de perceber que havia qualquer coisa de complicada na modernidade, mas é o mesmo movimento. Simplesmente há um retorno a alguns dos problemas que a modernidade não havia tratado, mas não há um retorno às raízes da modernidade.
Carla Rodrigues, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), é doutora em filosofia e pesquisadora do CNPq
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